Boatos compõem o real e o imaginário popular
antigos meios de comunicação do mundo, até hoje mexe no cotidiano popularLimoeiro do Norte. Atire a primeira pedra quem já não ouviu que, em algum lugar, um grande açude arrombou, algo estranho no céu explodiu, um ovo de dinossauro “chocou”, que bandido valente aparava criança em ponta de faca e onça-pintada no dente; que foi raptado por extra-terrestres
Não viu direito, nem lembra como foi, “só sei que foi assim”. Têm notícias que correm feito rastro de pólvora, de boca em boca, sobre o fim do mundo ou coisa parecida. Muitas vezes causa furor popular, em que no lugar da fundamentação científica vale a credibilidade de quem falou, mas dificilmente se sabe quem fez o primeiro anúncio, quem foi o autor do boato, um dos mais antigos meios de comunicação do mundo e que até hoje mexe no cotidiano popular, especialmente no Interior.
Em abril de 2007, várias crianças deixaram de ir à escola em Limoeiro do Norte porque pretendiam “morrer em casa com a família” quando chegassem as águas do Castanhão. É que correu a notícia de que numa dada segunda-feira o Castanhão iria arrombar, e seria uma questão de horas para as águas tomarem a cidade e só ficar a torre da igreja de fora. Por esse motivo, famílias do bairro Luís Alves juntaram as coisas de casa, montaram numa carroça e saíram de mudança para o alto da Chapada do Apodi, relevo inatingível àquela catástrofe.
O período coincidiu com a sequência de abalos sísmicos com epicentro próximo de Jaguaribara. “O Castanhão tremeu” foi a notícia que correu na imprensa local, depois nacional, com a população apavorada. Uma pedra encontrada durante as escavações de construção de açude, apelidada de Pedra do Fim dos Tempos, ainda hoje dá conta da profecia apocalíptica, já que a palavra científica tem menor credibilidade principalmente nas camadas populares, e depois que o homem disse que “nem Deus afunda o Titanic” e até hoje ele está debaixo d’água, o sertanejo prefere acreditar que, dentre outras coisas, na próxima quinta-feira, Dia de São José, se chover é bondade do Santo. O fato do tremor, comprovado, é que ocorreram terremotos na região do Castanhão — o que se disser sobre rachadura da parede ou data para o “gigante” arrombar é improvável, é boato, até agora.
Sucuri no Jaguaribe
Uma semana antes do Carnaval 2009, em que os atrativos nos municípios do Interior são os balneários, teve gente que deixou de tomar banho no Rio Jaguaribe. Correu notícia de que uma sucuri, vinda das águas do Castanhão, percorreu o Rio Jaguaribe até a Passagem Molhada entre Limoeiro e Tabuleiro. A Polícia havia encontrado uma mulher com os ossos quebrados, conforme a sucuri mata a presa. A juíza de Limoeiro teria proibido o banho na Barragem das Pedrinhas e na passagem molhada entre as duas cidades jaguaribanas.
A reportagem do Diário do Nordeste entrou em contato com Corpo de Bombeiros, Polícias Civil e Militar e o Poder Judiciário. Ninguém ouviu falar, a não ser porque “ouviu dizer”, de cobra sucuri, de mulher encontrada com o corpo estrangulado, nem de interdição judicial em balneário. Tinha-se um novo boato na região.
Sem ser sinônimo de fofoca nem de mentira, o boato é uma notícia que corre pública e informalmente, mas não confirmada. Não tem lugar, idade, classe social ou nível de conhecimento para se proliferar. Em Paris, França, existe uma Fundação para o Estudo e Informação sobre Boatos.
Para seu pesquisador-presidente, Jean-Noël Kapferer, o boato é a “voz das ruas. Reflete as preocupações conscientes ou inconscientes da sociedade no momento em que circulam. Há uma dose de imaginação, mas também um sentido de sobrevivência. Toda relação humana repousa sobre uma certa dose de segredos. Existe uma assimetria entre aquilo que você sabe e guarda para si e aquilo que conta para os outros. Esses outros, quando se sentem desinformados, se defendem, usando o boato”.
Assim se relacionaria o fenômeno da data de arrombamento do Castanhão com os abalos sísmicos. Ou, uma notícia de repercussão internacional, dando conta de uma suposta explosão de uma bomba atômica nos céus de Quixadá, no Sertão Central, durante o período da Guerra Fria, em que a corrida armamentista norte-americana levou a experiências aéreas nos céus da América.
Quando o boato é confirmado verdade, como o de que “o Castanhão tremeu”, vira, pela população, elemento de contra-poder e contestação à informação oficial do Departamento Nacional de Obra Contra as Secas (Dnocs). Mas foi necessário que diretores e especialistas realizassem uma coletiva de imprensa para dizer que “o Castanhão não rachou e não há indícios de que vá acontecer isso”, afirmou a diretora Cristina Peleteiro, para ainda ouvir de populares que “vocês estão escondendo coisa da gente”.
Muitas vezes encontrar a verdade, quando é possível, demanda uma pesquisa profunda e confrontamento de versões. Foi o que fez o historiador cearense Tácito Rolim, que ficou curioso para saber o que aconteceu quando “uma bomba atômica explodiu em Quixadá”, na década de 1950, apavorou a população e que até hoje tem quem se lembra do “estrondo”, que parecia que o mundo ia acabar, conforme relatam.
Ovo do ET
Entre fatos e boatos, o Ceará é rico de fenômenos no mínimo bizarros: é a “criança sem nariz e com apenas um olho” em Jaguaribe, o “porco com cabeça de gente em Ubajara”, a bola de fogo que explodiu em Chaval ou o ovo de ET encontrado em Boa Viagem, que causou comentários de diferentes ordens.
Sem atestado científico ou de imaginação, muitos casos guardam histórias e comportamentos populares, que difunde sua excentricidade pela oralidade, o boca-a-boca, o “andam dizendo”. Não tem origem nem fim, mas sobrevive nas calçadas à noite, nas esquinas de dia, ou onde tenha pelo menos duas pessoas, até uma falar “ouvi dizer que…”.
Pelo boato, comunidades até constróem identidades próprias, no cotidiano típico de zona rural, quando os moradores colocam as cadeiras nas calçadas e começam a divagar sobre fatos extraordinários.
PESQUISA ACADÊMICA
Mistérios assombram sertanejos cearensesLimoeiro do Norte. Quando teve fim a segunda guerra mundial, em 1945, os então aliados Estados Unidos e União Soviética partiram para lados diferentes e deram início à corrida armamentista, chamada de Guerra Fria. Quase 15 anos após as explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki, o Ceará, mais especificamente Quixadá, no Sertão, é destaque internacional. O motivo: a explosão de uma bomba atômica. Entre o medo de uma nova guerra mundial e o fim do mundo, a população fica apavorada, ora tranca-se dentro de casa, ora vai para o meio da rua. Conspiração militar? Extra-terrestre? Apocalipse? Correram boatos nos jornais de todo o mundo sobre o que ainda hoje é um mistério dos céus de Quixadá.
Em setembro de 1958 os quixadaenses presenciaram um grande clarão, seguido de forte estrondo, como uma explosão. Naquele período o lugar era sobrevoado por jatos militares. Em pouco tempo, corria nos jornais de todo o País, e no internacional “The New York Times” a notícia de que uma bomba atômica explodiu nos céus da cidade de Quixadá.
Outro fato curioso teria acontecido em Madalena, na mesma região, onde foi avistado um clarão de luz cobrindo toda a cidade, conforme relato da dona de casa Francisca Pereira de Lima: “quando a gente tava dando início à reza na igreja, aí deu aquele clarão, as meninas gritaram: ‘aii, que é o fim do mundo’. Diz que quando o mundo fosse terminar ia ter um sinal do céu. Mas seja o que for que eu não entendia nem entendo, mas tinha medo, passou, e depois a gente ficou relatando que era o fim do mundo, mas nada aconteceu…”.
O relato foi colhido pelo historiador cearense Tácito Rolim, que tratou do assunto em sua dissertação de mestrado na Universidade Federal do Ceará. O pesquisador reuniu uma série de documentos, recortes de jornal e entrevistas com “testemunhas” dos episódios em Quixadá e Madalena.
Estado de choque
Se o “fantástico é algo criado pela imaginação, extravagante, extraordinário, espantoso, acredito que estes acontecimentos carregam o selo deste adjetivo, que anda de mãos dadas com o bizarro, bem representam a admiração e o estado de choque daquelas pessoas que se embasbacaram há meio século atrás com fatos de tal natureza”, afirma Rolim, em seu estudo. De acordo com ele, “discos voadores e satélites artificiais eram evocados o tempo todo pelos correspondentes e jornalistas do Interior do Ceará para oferecer ao leitor uma explicação razoável para o que ocorria e que ninguém parecia explicar satisfatoriamente”.
“O que pude observar foi que os sertanejos, em muitos casos, procuravam compreender os episódios inusitados afastando-se das explicações científicas (que possivelmente não entendiam completamente), aproximando-se daquelas mais ligadas aos sentidos e aos sentimentos, daí o aflorar freqüente de deslumbramento e admiração”, disse.
Também nos estudos de Rolim, uma matéria no Caderno Regional, do Diário do Nordeste, em 31 de julho de 2004, dava conta da queda de um destroço de um foguete (lançado no Cabo Kennedy, antigo Cabo Canaveral) no Sertão Central, apelidado de “Ovo do ET”. “As percepções daqueles que testemunharam o “ovo do ET” em muito se assemelham àquelas dos sertanejos que há 50 anos atrás avistaram os objetos misteriosos e as tochas fosforescentes”, conta ele.
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