O entendimento da cultura e do contexto histórico de Israel nos tempos bíblicos é extremamente importante para que possamos compreender melhor a mensagem bíblica. Talvez todos que leem este texto concordam com isso.
O exemplo que ora mostraremos – de uma interpretação possivelmente equivocada – não é daqueles tão relevantes por seu conteúdo ou carga doutrinária envolvida, contudo é surpreendente pelo fato de termos estabelecido um senso comum sobre o significado do que está escrito e termos popularizado uma ideia distorcida do fato.
O ocorrido trata-se da profecia de Jesus Cristo em relação a Pedro afirmando que ele o negaria antes que o galo cantasse, conforme o evangelho de Mateus 26.69-75 e paralelos. A pergunta é: realmente foi um galo (ave) que cantou ou era possível o fato do galo cantar se referir a outra coisa?
Um problema em aceitar que uma ave realmente tenha cantado para “selar” a negação de Pedro é que em Jerusalém não havia galos ou galinhas. Havia até mesmo uma proibição de criá-los visto que Jerusalém era considerada a cidade santa e, por questões de higiene, e pureza das coisas santas, não era permitido criar os bichinhos.
Como podemos entender então o texto que fala do “canto do galo”?
Segundo Martins[1] (2011, p. 61) o segredo está em compreender como os romanos dividiam a noite. Ela era dividida em quatro vigílias de aproximadamente três horas cada uma da seguinte forma:
a) Prima vigilia: do pôr do sol até às 9 horas, também chamada de vigília do entardecer.
b) Secunda vigília: das 9 horas à meia-noite, chamada de vigília da meia noite.
c) Tertia vigília: de zero horas às 3 horas, também conhecida como vigília do canto do galo.
d) Quarta vigília: das três horas até a aurora, chamada de vigília do amanhecer.
Essas quatro vigílias determinavam o período de serviço das guardas romanas. Os judeus, posteriormente, também adotaram essa divisão para a noite. As quatro vigílias são designadas pelo nome especial de cada uma no texto bíblico a seguir: “Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã; para que, vindo ele inesperadamente, não vos ache dormindo. O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai!” (Marcos 13.35-37, grifo nosso). As expressões tarde, meia-noite, cantar do galo e manhã referem-se claramente ao final de cada vigília da noite mencionada anteriormente.
O mais interessante ainda é que, segundo Martins[2]: “o ‘canto do galo’ era a expressão usada naquela época no império romano para se referir ao toque da trombeta tocada pelo soldado romano avisando a todos o final da terceira vigília da noite”. O final de cada vigília e o início de outra era marcada por um toque de trombeta, mas aquela da terceira vigília tinha o nome especial de gallicinium em latim que traduzido para o português significa “o canto do galo”. Assim, conforme o exposto, possivelmente Jesus Cristo estaria afirmando que a última negação de Pedro se daria antes das 3 horas da madrugada, ou seja, antes do tocar da trombeta (cantar do galo) que finalizaria a terceira vigília da noite.
Todo mundo em Jerusalém sabia do toque da troca de guarda às 3 horas da manhã no castelo de Antônia e conheciam que o toque da trombeta era chamado de “canto do galo”. Jesus não falara de um corriqueiro canto de um galo no fundo do quintal da casa de Anás e de Caifás, mas do barulho ensurdecedor da trombeta que se espalhava por toda Jerusalém, soando forte nos ouvidos de Pedro, balançando sua alma, fazendo com que chorasse copiosamente por ter traído a Jesus. (MARTINS, 2011, p. 67).
O que dizer então quando Marcos afirma que o galo cantaria “duas vezes”? (Marcos 14.30). Realmente trata-se do toque duplo da trombeta. Em dias festivos às vezes era preciso dar dois toques. Um primeiro numa direção e, em seguida, após alguns momentos, outro noutra direção. Também há a possibilidade dada pelo historiador Plínio de que o toque dado à meia-noite era chamado de o “primeiro cantar do galo” já o toque às 3 horas, finalizando a vigília, era conhecido como “segundo cantar do galo” conforme Martins. De qualquer forma trata-se de um toque “duplo” da trombeta.
Como dito antes, o fato é simples. Não alterará em nada a vida espiritual de ninguém (esperamos). Contudo, nos serve como alerta para nos aprimorarmos na interpretação bíblica e sermos um pouco mais criteriosos quanto à compreensão dos fatos. Precisamos buscar informação da época e o contexto vivencial dos personagens e não atribuirmos ao texto nossas impressões atuais como leitores e nem mesmo nossa perspectiva pós-moderna.
FONTE - http://teologiacritica.blogspot.com.br/
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